Texto de Dr. Ricardo Timm de Souza
Introdução a um conceito
I - A organização dos produtos de qualquer atividade humana, a institucionalização posterior e o arranjar das conquistas em forma organizada e, por conseqüência, disponível a outros e ao futuro, tal deu origem a um grande quadro formal que se foi consubstanciando naquilo que se chamou, mais tarde, na tradição sociológica, de burocracia. Nada houve, e nada há aí, em princípio, de negativo. Houve a necessidade da preservação e da ordenação, houve um organizar externo da multidão de dados internos que se atropelam pela própria dinâmica de complexificação das pesquisas e das sociedades de qualquer tamanho. Estabeleceu-se uma forma de apresentação dos conteúdos a serem apresentados, configurou-se uma economia organizativa, analítica, que intendia a precípua preservação das sínteses. Assim, se para chegar-se a um juízo sintético científico ou filosófico em sentido quase kantiano, mesmo que a posteriori - aquele que recompensa realmente os esforços científicos e organizativos de pensadores e organizadores com algo novo e que retribui seus esforços, foi preciso trespassar as diversas camadas de análise de dados e experiências do passado e, ao cruzar por estes, ultrapassá-los -; fez-se necessário, ao fim de cada jornada, ressuscitar as vias analíticas, analisar o conquistado e organizá-lo racionalmente, de forma a preservar, a um tempo, tanto seu conteúdo como a forma em que se deu seu desenvolvimento.
II - Deste modo, vêm forma e conteúdo desde sempre acoplados, desde os primórdios de uma sociedade em processo crescente de auto-consciência e de uma ciência com pretensão de validade intersubjetiva e desde que os dados foram suficientemente numerosos para periclitar sua identificação e contextualização, caso tais esforços organizativos não se dessem. E isto não se fez em um certo nível de pesquisa e organização, apenas; em todos os níveis, em todos os modos, em todas as alturas dos acontecimentos estabelece-se uma estratificação organizativa; a razão conteudística faz-se acompanhar da razão instrumental, que mostra e de-monstra os limites à primeira, acabando por vezes por escravizá-la ou substituir-se a ela assumindo o seu lugar na história, patologizando a organização e obscurecendo, em todos os sentidos, o que pretenderia esclarecer.
III - Tal patologização pressupõe, portanto, para sua superação, um como que retorno às origens, um denunciar do inessencial e do desumano em torno aos conteúdos desde sempre humanos que se desvelam nas ciências e nas organizações. Reencontrar o essencial, respirar o clima do que realmente conta para além das formas: eis uma tarefa árdua e não isenta de perigos, mas nem por isso menos necessária; pelo contrário, indispensável em sua procura dos fundamentos não só dos conteúdos como das formas que os revestem, em última análise. Isto significaria a reconciliação com uma última verdade: as formas são secundárias aos conteúdos e a estes devem servir, e não o contrário.
IV - O Brasil é um país que nasce formalizado. Quando as capitanias são divididas entre os donatários, linhas retas delimitam-nas: para além do relevo, dos rios e montanhas, da vida pulsante sobre a terra, estica-se uma linha divisória reta, uma violência geométrica. Desde cedo evidencia-se uma hipertrofia legalista. Esta tem a ver com a carência de conteúdos de sustentação claramente perceptíveis. O positivismo cai ali como uma luva bem ajustada: nada melhor do que transformar as imponderabilidades humanas em variáveis de uma equação resolvida a priori, sem discussões de fundo, sem hesitações, sem reflexões - e "recusar a reflexão, isto é o positivismo" .
V - Com o passar do tempo, as velhas estruturas bem cultivadas se vão mais e mais enrijecendo. O campo de possibilidades do desenvolvimento dos conteúdos mais diversos - como seja, por exemplo, a valorização radical do essencial de qualquer sociedade: o ser humano - estreita-se cada vez mais e se afasta inelutavelmente do horizonte de compreensão não só dos esquemas interpretativos da realidade mais toscos e menos ilustrados do "homem comum", mas também (e aí entram necessariamente variáveis de índole ideológica cuja obviedade dispensa qualquer exame acurado no âmbito dessas observações propedêuticas) dos mais agudos elementos das ciências e das organizações mais aperfeiçoadas. O estado brasileiro se configura formalmente, copiando as formas estrangeiras, não vendo em seu seio motivos para desconfiar das ideologias desumanizadoras ilustradas, na melhor das ingenuidades que tão bem serve a uma estrutura de velamento da realidade, mãe de todos os vícios e crimes que nunca são percebidos como tais, pois a forma legitimadora não permite que se vá além de sua própria envoltura de segurança.
VI - Não é por acaso que as primeiras faculdades do Brasil sejam as de Direito - leia-se direito positivístico, e as exceções, inclusive no interior do proprio Direito, confirmam largamente a regra - que funcionam como sanções incontestes de um status quo nunca percebido como retrógrado e petrificado, devido ao já avançado estado de formalização patológica encontradiço nestes tempos tão iniciais. Ali se começou a confundir de maneira explícita a forma com o conteúdo e a desdobrar juridicamente e cientificamente esta confusão; ali a consciência social hegemônica sancionou esta debilidade congênita de discernimento - e, em nome de um discernimento que nunca existiu de fato, principia-se a fazer ciência no Brasil.
VII - O desenrolar dos tempos não fez mais do que aperfeiçoar esta tendência. Todas as dúvidas são remetidas às formas e formalidades; somente não cabe dúvidas com relação ao poder efetivo das formalizações, comprovado geração após geração, legalizado (
dura lex, sed lex), onipresente, legitimando a violência e a exploração do mais forte sobre o mais fraco, em uma metamorfose
sui generis: eis que a forma pretensa de um conteúdo de exercício de uma boa sociedade se transforma no conteúdo de poder das camadas dirigentes desta mesma sociedade. Nunca o princípio baconiano do saber como poder se fez presente em algum lugar de forma tão inequívoca: no país dos bacharéis chamados de doutores, pequena formalidade tola e vazia, uma formalidade ampla domina as consciências, cata nelas os elementos críticos, pulveriza os restolhos de dúvida, castra a criatividade
ab ovo, prepara o terreno para a violência explícita da opressão generalizada. As constituições são sempre mais espessas e com menos referência à realidade fática. Quanto mais letras, menos conteúdo; quanto menos conteúdo, mais hipocrisia e menos percepção da realidade. Inicia-se oficialmente o império da lei e da ordem. Tripudia-se sobre o conteúdo transformado em nada pela forma onipotente e onipresente. O Brasil reencontra suas verdadeiras origens.
VIII - É neste contexto complexo, é nesta crise perpétua e profunda, que se encontram as Universidades brasileiras. Geralmente, são estas o repositório de energias críticas ainda não neutralizadas. Eis que, criada em última análise para referendar formas, vê-se em um certo ponto de sua existência compelida a conviver e a viver de conteúdos em uma eterna crise de sinceridade que é, ao mesmo tempo, um estertor criativo possível. A Universidade medíocre é uma
contradictio in adjecto: ela não pode existir; mas, para superar sua mediocridade, cumpre reencontrar o coração crítico de todo avançar, de toda pesquisa, de toda ciência, de todo esforço - em uma palavra, cumpre superar de fato as formas e de-formações a favor do que realmente interessa, do que sempre interessou, mesmo que a consciência disso não estivesse ou não pudesse estar presente. Quando a crise é grande demais - na catástrofe de uma ditadura sangrenta, no revolver de um avançar frenético dos tempos, nas grandes encruzilhadas históricas - todos sabem o que fazer, tudo é importante. A questão é: o que é realmente mais importante para a Universidade em tempos menos claramente conturbados? Dito em termos mais acadêmicos: onde se encontra ali o ponto de equilíbrio entre a forma e o conteúdo? Nenhuma questão de somenos: esta é a questão decisória para o futuro da Universidade mesma. Ou se supera a letargia da mediocridade legitimadora e confortável, ou se lança ao futuro: eis a verdadeira grande questão.
IX – A palavra sustentabilidade é central. E é central em vários sentidos desse termo. Pode tanto ser entendida como estrutura formal de preservação das condições materiais para a consecução do trabalho da Universidade, como pode ser entendida como atalho para transformar a Universidade em sua negação, em um negócio, uma organização meramente burocrática ou coisa do gênero. Necessita, portanto, de adjetivação. Se a sustentabilidade econômica é obviamente vital, ela não é um fim, mas um meio; a sustentabilidade que se identifica com o fim da Universidade é a que permite que ela seja, exatamente, uma Universidade: o espírito que a habita; este não é econômico, mas ético-intelectual.
X - A Universidade não é, assim, uma grande estrutura jurídica, mais ou menos invisível, que paira por sobre as pessoas; são as pessoas que a constituem, apesar das instalações e prédios. São as pessoas que podem emprestar à Universidade sua viabilidade, ou melhor, que podem hipotecar a ela suas melhores energias. Esta grande instituição jurídica organizada, porém, não nasceu do nada; sua filiação formal é clara. Surgiu como baluarte de defesa das grandes estruturas formais e formalizantes da sociedade e da cultura preponderantes: se não fosse assim, as eternas querelas de competência e as acusações de improdutividade social e cultural nunca teriam surgido ou teriam sido neutralizadas a priori pelo próprio processo natural de superação de deficiências. O fato de que as deficiências se perpetuem aponta para raízes muito profundas, indicam aquele desvio original, quando a proficiência (ou improficiência) acadêmica se decidiu, por insegurança ou quaisquer outras causas nebulosas, a chancelar as formas em detrimento dos conteúdos, e não o contrário. Implicitamente estava decidida, naquele momento, uma direção de desenvolvimento que se daria em perpétua tensão consumidora de energias em relação aos conteúdos mais fundamentais. Estabelece-se aí também a crise de competências: a quem compete o que, quem é competente? A burocracia adquiriu vida própria e estendeu um véu protetor sobre as insuficiências particulares de estudantes, docentes e administradores; estas deficiências não são mais suficientemente claras, na medida em que a onipotência organizativa formal é suficientemente poderosa e ampla. Aí está uma das raízes das incompetências diuturnas; aí se refugiam os medos e as mediocridades acadêmicas - as deficiências percebidas sempre o são mais como insuficiência de forma (como se a forma perfeita produzisse por uma estranha alquimia os conteúdos realmente faltantes) do que como carência de fundamentos e de produtividade acadêmica real. É neste círculo vicioso que a pesquisa, o ensino e a extensão se debatem. É aí que se consomem o tempo e as energias de muitas instituições e de muita gente, e as conquistas sofridas o são muito mais do que o necessário, pois tiveram de lutar contra inomináveis resistências internas de toda índole. É neste meio que vive e sobrevive a vida acadêmica.
XI -Poder-se-ia talvez objetar que esta análise é por demais severa em relação à instituição universitária, pois esta está inserida em um meio muito mais amplo, a quem se poderia lançar mais procedentemente estas acusações. Mas isto não seria mais do que a confirmação dos elementos veladores e postergatórios que se quer descobrir. Em todos os tempos e lugares, é na Universidade que se cruzam as crises nacionais de forma mais produtiva: a tarefa precípua da Universidade é trazer estas crises à consciência cultural e social de maneira inequívoca, e, se isto não está sendo feito, é porque a Universidade está de tal forma identificada com a generalidade da sociedade em seus elementos mais falsos e criticáveis, que não consegue desvencilhar-se desta rede ampla. Em outros termos: a Universidade que se identifica perfeitamente com seu meio é um mecanismo ideológico perfeito e, por conseqüência, sua própria negação. A crise da Universidade não é per definitionem a crise da sociedade: a da Universidade deve ser, no mínimo, muitíssimo mais aguda e produtiva. A responsabilidade que assoma na Universidade não é delegada por ninguém: é dela mesma. Caso não a perceba assim, é porque degenerou em uma sua caricatura, decaiu no sonho positivista: transformou-se em uma grande escola, em um centro puro e simples de ensino acrítico, um centro de adestramento mental, transmutou-se na formalidade acobertadora mesma.
XII - Esta é a realidade patente da generalidade das instituições de ensino superior brasileiras. Congenitamente às voltas com todo o tipo de carências de formação básicas presentes nos estudantes que nelas ingressam, acabou assumindo uma postura geral escolarizante. O que se entende por este termo? Trata-se de uma organização de transmissão de conteúdos que tende à fixidez tanto em termos formais como conteudais. Ensina-se o que necessita ser aprendido, originalmente para preparar o estudante para a futura vida acadêmica autônoma e depois, por hábito adquirido e lei do menor esforço, para funcionalizar a transmissão acrítica das ciências; é o mais alto nível da educação bancária. Se nas escolas básicas vigora preponderantemente este método, vai-se a Universidade mais e mais se transformando em uma grande Escola de adestramento, em um grande banco científico. As "aulas" assumem um posto cada vez mais significativo na vida acadêmica, e por "aula" se entende um locus delimitado de índole espácio-temporal onde se daria o momento realmente significativo da vida acadêmica, a coroação dos esforços docentes e discentes. Ali tudo é inteligível: a insegurança e a dúvida não estão geralmente presentes, porque se substituiu a qualidade pela quantidade. Há uma inteligibilidade limitada e pretensamente auto-suficiente, que substitui com vantagens evidentes a inteligibilidade obscura do processo da pesquisa aberta, e isto aos olhos de professores e estudantes ansiosos em refugiar sua insegurança em campos de limites claramente definidos - ao contrário da in-definição e potencial in-limitação de uma biblioteca ou da internet. Há também uma ordenação clara no tempo e no espaço, em outras palavras uma forma, que tende por sua natureza a controlar e delimitar os conteúdos, impondo barreiras ao seu desdobramento espontâneo. Além disso, a "aula" porta o seu próprio reflexo degenerado: a "prova" formal, onde a “segurança” do docente choca-se com a insegurança - agora realmente percebida - dos discentes. E não raras vezes o processo livre e aberto da vida e da descoberta acadêmicas transmuta-se em um jogo de poder e entrechoque de mediocridades, jogo este mediatizado, emoldurado e sancionado pelas formas hipertrofiadas. Assim, os conteúdos, razão de ser de tudo, manietados desde cedo por formas organizativas, acabam por desaparecer entre suas caricaturas dadas à luz pelas formas onipotentes.
XIII - Em um tal clima essencialmente violento, de sentido violentado, ocorrem obviamente as condições de degeneração de uma quantidade de elementos originalmente presentes em uma vida acadêmica sadia. Os estudantes - caracteristicamente nomeados "alunos" - repositórios permanentes de incompetência, ávidos por diplomas, sem autonomia, sem uma cultura geral prévia que lhes permita perceber o que realmente estão a fazer, sem tempo, sem espaço, sem biblioteca, sem saber como utilizar a internet, sem liberdade, sem organização. Os docentes, violentados em sua formação e maturação, encarquilhados por formalidades, com limites por todos os lados, deslumbrados por formas, sem ânimo acadêmico, presas fáceis de um círculo vicioso de auto e heterojustificações e, acima de tudo, tragicamente, sem real conteúdo e sem condições e vontade real para buscá-lo. A estrutura geral, servindo a tudo isto: fazendo prevalecer oficialmente as formas - prédios, equipamentos, calendários, assinaturas, ofícios, controles - em detrimento do conteúdo - pessoas, bibliotecas, vida acadêmica. É o elo mais sincero nesta cadeia: reflete sem pudores a realidade verdadeiramente constitutiva e mais profunda desta totalidade, torna visível a invisibilidade aparente da formalidade original - reencontra as origens da Universidade brasileira.
XIV - Estas origens, porém, não se contentam consigo mesmas. A própria urgência dos tempos correntes se tem encarregado de confrontar, de forma mais ou menos clara, mais ou menos consciente, este modelo com suas limitações. A insustentabilidade do "continuar como está" é cada vez mais evidente. A sociedade cobra sempre mais incisivamente a sua inteligibilização em termos acadêmicos, cobra competência real para além da competência formal, exige a explicitação clara dos problemas e a clareza dos conteúdos. Enfim, cobra sustentabilidade intelectual.
XV - Um tal sentido de questionamento, esta inquietação, acaba por evitar a petrificação das estruturas. Em nenhuma estrutura formal universitária deixa de pulsar sua motivação e seu sentido de conteúdo originais: seja no empenho de um estudante especialmente interessado, seja no esforço de um docente inquieto ou de um pesquisador ousado, seja na consciência difusa da necessidade de transformação. Por mais que a forma subtraia do conteúdo sua precedência, a ordenação estrutural daí decorrente permanece sempre desequilibrada, porque essencialmente hipócrita; o tecido da falsificação formal abriga ainda células saudáveis, como o tecido da ideologia abriga sempre algo do pensamento aberto. É por isso que as entidades universitárias brasileiras abrigam sempre a possibilidade da surpresa produtiva e do reencontrar de sua vocação urgente, presente, contemporânea. Em termos práticos, isto significa o seguinte: as raízes necessárias da subversão das formas se encontram onde esta formalização se mostra mais rígida, pois ali o contraste entre a realidade do conteúdo e a fantasia da realidade formalizada é mais nítido. A palavra grega "crise" encontra aqui seu sentido original: ruptura possível e real com um status quo desalentado que se dá pela exacerbação da formalização deste status quo. A única possibilidade de superação da mediocridade voluntária e involuntária se dá pela confrontação dela com suas próprias insuficiências, a partir de contrastes elucidativos. Em um ambiente de respeito aos conteúdos maiores e mais importantes, não-formalizados, as formalizações quotidianas tendem a reencontrar seu verdadeiro espaço, a saber, a sua função de apoio ao desenvolvimento destes conteúdos.
XVI - A estas alturas deveria aparecer com clareza a essência da transformação necessária e urgentíssima da universidade brasileira como um todo. Trata-se de colocar o peso de sua tradição e de sua vocação acadêmica a serviço dos conteúdos criativos, da pesquisa produtiva, situada, da responsabilidade e da coerência de princípios, abdicando das formalizações que disfarçam estas carências fundamentais – ou seja, trata-se de adjetivar claramente a palavra “sustentabilidade”, e com o adjetivo “intelectual”. Trata-se de redirecionar um enorme potencial energético, desperdiçado normalmente em insignificâncias ou subtraído improdutivamente de esforços individuais, para aquilo que realmente interessa e que é o sentido mesmo da existência da universidade. Trata-se de ter coragem de desafiar as formas mortas em nome de conteúdos dignos, de resgatar a dignidade do savoir-faire acadêmico apesar das formalizações esterilizantes. Que a casca caia, para que a semente possa crescer.
XVII - Se a vida acadêmica tem em um de seus pólos o docente, ou seja, o pesquisador, e isto está de acordo com os princípios de qualquer universidade e com a Universidade desde seus princípios - este somente corresponderá à sua responsabilidade caso esta não seja delegada a ninguém e a nenhuma estrutura formal. O docente deve se transformar - ir-se transformando - em um centro vivo de excelência acadêmica, inacabado mas em desenvolvimento. Ele deve ser responsável, no sentido maior do termo, pelo que produz. Isto significa que ele deve circular com absoluta desenvoltura em torno à sua especialidade, responsabilizando-se pelo seu desenvolvimento intra-universitário, ampliando seus horizontes, respondendo por ela no contexto da sociedade que o sustenta, vivendo e transmitindo o seu métier, coordenando a curiosidade em torno ao desenvolvimento dos temas que conhece e pelos quais é em última análise responsável, organizando as capacidades discentes, destilando competência e responsabilidade, assumindo plenamente seu papel na sociedade. Sem isso, o docente não é tal, mas apenas uma engrenagem da grande máquina ideológica formalizante, uma engrenagem tanto melhor ajustada quanto mais respondente às insignificâncias das formalidades quotidianas, aos controles e tabelas, ofícios e chamadas, sem atrito, sem vida própria. O docente tem de ser inteiramente responsável por si mesmo – ele é a ponta de lança da sustentabilidade intelectual da Universidade, e mais ninguém.
XVIII - A vida estudantil tem sentido quando o estudante é capaz de, por si e com o apoio dos colegas e docentes, perceber suas próprias insuficiências acadêmicas como um problema próprio e indelegável, e a sua solução como uma questão de honra - ou seja, quando a responsabilidade é a um tempo a origem e a meta de seus esforços e conditio sine qua non de toda e qualquer substância real da vida universitária para além de formalidades tolas. É na instância estudantil que este termo, responsabilidade, deve brilhar com mais vigor e espraiar-se por todos os recônditos da grande instituição. É ao estudante que deve ser delegada a tarefa de sua formação básica, apesar de todos os condicionantes, dificuldades e hábitos arraigados - esta é sua primeira tarefa propriamente política. Sem isto, os próximos passos não poderão ser dados, e o círculo vicioso de elementaridade e mediocridade - tão caro às formalidades insubstanciais e academicamente inócuas, quando não perniciosas - não poderá ser vencido construtivamente. Sem isto, o estudante não passa de um mero "aluno" contabilizado a priori no rol dos incapazes e de quem não se espera normalmente mais do que a reprodução da inocuidade social tão cara a tantas ideologias. Com isto, as responsabilidades começam a ser realmente cobradas, não no âmbito da burocracia preservadora da pequena law and order de cada dia, das tarefas tolas cumpridas à risca e da fuga ao risco da criatividade e da novidade possíveis em cada meio, mas, sim, no espaço que se cria pela consciência da possibilidade do criar acadêmico verdadeiro e conseqüente, que fala e responde por si mesmo.
XIX - Os conteúdos são primários em relação às formas, e isto significa, em linguagem mais clara, que são eles que verdadeiramente interessam em uma universidade digna deste nome, como por extensão em qualquer instituição humana: eis o que se tem de esperar como ponto de partida para todo e qualquer projeto real de aperfeiçoamento da universidade como um todo. Não existe projeto que não seja um chamamento à responsabilidade, chamamento à responsabilidade de assumir conscientemente as tarefas tornadas óbvias pela exigência do que surge quando a carapaça formal entra em colapso pela vivificação da realidade acadêmica própria e propriamente dita, a relação acadêmica entre docentes e discentes. O mais é apoio, atividade-meio, subalterna em todos os sentidos ao sentido da Universidade.
XX – A essa vivificação da relação acadêmica entre docentes e discentes chamamos, portanto, sustentabilidade intelectual. Ela é princípio, e não conclusão; em não existindo, ou entrando em falência, levará tudo o demais de roldão. Educação, em sentido próprio, não pode ser mercadoria; qualquer razão capciosa que tente identificar ou tornar congruentes esses dois termos, em qualquer sentido, está, na posição de estratégia biopolítica de poder e controle, a serviço de algo que nada tem a ver com educação e, portanto, nada tem a ver com Universidade. Apenas adestramento pode ser mercadoria, e adestramento nada tem a ver com Universidade.
XXI – Na Universidade, de certo modo, o Espírito sobrevive em meio às tempestades da cooptação mercadológica; por outro lado, uma vez cooptado o Espírito, o que se tem por inferência estrita é a morte da Universidade. Ainda há tempo para opção.
Porto Alegre, 22 de dezembro de 2011.
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