Fabio Goulart[1]
RESUMO
No
ano de 2011 pessoas de todo o mundo começaram a indignar através das redes
sociais e blogs da internet contra as mais variadas injustiças do mundo. Uns queriam
liberdade e democracia, outros criticavam os abusos dos bancos e alguns apenas
queriam ter comida digna na mesa todos os dias. Em pouco tempo o mundo virtual
e o real se viram contaminados por uma sincronia
cosmopolita febril que levou multidões às praças de todo o mundo e
conseguiu, entre outras coisas, derrubar ditaduras opressoras e muito antigas. Com
base em estudos, análise de mundo e vivências do autor, este trabalho visa
clarificar à luz da filosofia os movimentos do tipo Occupy em suas mais
variadas formas.
PALAVRAS-CHAVES:
Occupy. Autonomia do indivíduo. Internet.
ABSTRACT
In 2011 people from around the world began to be
indignant through social networks and Internet blogs against various injustices
in the world. Some people wanted freedom and democracy, others criticized the
abuses of the banks and others just wanted to have decent food on the table
every day. In a short time real and virtual world found themselves infected by
a feverish sync cosmopolitan, masses
that took the squares around the world and has, among other things, to overthrow
very old oppressive dictatorships. Based on studies, analysis of world and
experiences of the author, this paper aims to clarify in the light of
philosophy the Occupy movements in yours more various forms.
KEYWORDS: Occupy. Autonomy of the individual. Internet.
PRÓLOGO
Havia
um silêncio desolador naqueles dias. Os bolsos, as praças e as almas estavam vazios.
Não havia revoluções, porém eram poucos os satisfeitos. Cada um tinha sua
crise, cada um estava com problemas demais para pensar nos problemas dos
outros. Foi ai que na calada dos bits, as pontas dos dedos dos oprimidos
gritaram não palavras de ordem, mas sim brados de “basta”. E assim, através da
frieza das telas sentiu-se novamente o calor humano dos distantes e dos
próximos. Percebeu-se que esta não era apenas uma luta de descontentes
solitários... Era a luta dos 99% conta 1%. Neste momento muitos se soltaram das
correntes, saíram de suas cavernas e se reuniram simplesmente para ocupar os
templos daqueles que haviam esvaziado suas vidas.
SOMOS TODOS MOHAMED BOUAZIZI
O
que pode a economia na política se torna uma pergunta secundária quando a
defrontamos com a pergunta “O que pode a
economia na vida de um simples indivíduo“. O século XX teve uma série de
acontecimentos que de certa forma acabaram por autoafirmar o sistema capitalista baseado no liberalismo político.
Não critico tal sistema em si, pois dentre todas alternativas e proposta aplicadas
no século passado ele se mostrou como a mais capaz de promover a igualdade, o
desenvolvimento e a justiça entre os povos.
Minha
crítica se dá ao fato deste ser um sistema contraditório, pois é baseado na
diferença, mas que busca uniformizar os pensamentos, os sonhos, as vontades e
tudo mais que compõe o que podemos chamar de força de originalidade dos indivíduos.
Tal sistema gira a partir de uma lógica interna autorreguladora e retroalimentadora
que nos ensina a tratar com hostilidade tudo que se apresenta como diferente de
si mesma para assim se autoconservar
de ameaças internas e externas. Justamente assim o sistema cria seu jeito de se
impor sobre os indivíduos, falsificando a impressão de já estar contido na
essência de cada um, forçando-nos o princípio de identidade que acaba por
impossibilitar o exercício da autonomia plena e tenta se colocar no lugar de
uma suposta natureza humana.
Assim
começa o processo esvaziamento psicológicos dos indivíduos. O que acontece é
que a partir do sistema criamos uma série de conceitos na tentativa de tentar
explicar o mundo e os próprios indivíduos. O problema ocorre, pois ao
estabelecermos os conceitos acabamos por passar a tentar entender o mundo a
partir dos conceitos que nós mesmos criamos. Não faço crítica ao nosso aparato
cognitivo, seria demasiadamente complicado se a cada cadeira que avistássemos tivéssemos que fazer uma longa observação,
para tentar entender o objeto que se apresentava diante de nossos sentidos.
Realmente é justo criarmos o conceito “cadeira”,
que não representa uma cadeira em si, nem todas as cadeiras ao mesmo tempo, mas
que conserva certas características, positivas e negativas, que se o objeto as
apresentar, logo: será uma cadeira. Neste processo, não só nos valemos do
conceito de cadeira durante nossas vidas como também o transmitimos para nossos
filhos e netos que se utilização deste conceito previamente elaborado e assim
poderão, entre outras coisas, se dedicar a elaboração de novos conceitos de
coisas que ainda não havíamos dado conceito algum.
Este
aparato é válido e permitiu todo desenvolvimento filosófico e científico dos
tempos das cavernas até os dias atuais, porém carrega consigo ocultamente um
viés opressor, alienador e discriminatório. A coisa em si e até mesmo o
fenômeno da coisa em sua magnitude acabam insignificantes perante a força
descritiva e totalizadora do conceito identificador. Há uma espécie de barbárie
epistemológica.
Como
então falamos de objetos cujo não encontramos sua correspondência no mundo
material? Como falamos do outro? Não
falamos. Limitamo-nos ao seu conceito. Isto acaba por esvaziar de sentido e
significado de uma série de conceitos básicos e essenciais para que possamos
entender a nós mesmos e ao mundo do qual fazemos parte. Assim sendo, quando
falamos em liberdade, não falamos na liberdade que desejamos, ainda que
irracionalmente, enquanto projetos de indivíduos livres e autônomos, falamos de
uma liberdade conceitual baseada numa série de procedimentos teóricos e
jurídicos. Desta maneira esvaziamos de tal forma o conceito de liberdade, que a
liberdade em si acaba por se tornar uma espécie de fantasia política e acabamos
por ficar sem vontade para buscá-la. Cito Zamora:
(...)a liberdade do sujeito não se identifica com a
liberdade e igualdade garantidas pelos procedimentos jurídicos e políticos do
Estado. Ao tentar salvar a autonomia moral da razão pura frente de todo
encadeamento social, a ordem social e sua regularização jurídica ficam em parte
também a salvo da determinação moral que assim é privatizada e neutralizada
(Moreira, 2008, p.16).
De
uns séculos para cá, o espírito
iluminista proposto pela modernidade acabou dando lugar ao espírito individualista. O sistema
capitalista em suas mais variadas formas pelo mundo nos deixou incapaz de
enxergar o outro e isso nos esvazia, pois também acaba por nos privar do
privilégio de ver refletido no olhar do próximo a nós mesmos e nossas
aspirações. Nossa ânsia por tentar determinar o que as coisas são através da
força do conceito eclode nas relações humanas mais básicas[2],
gerando uma automutilação que nos que nos esvazia psicologicamente nos deixando
a mercê de razões externas, como: doutrinas políticas, dogmas religiosa, a
indústria cultural, etc.
Temos
assim toda nossa originalidade e humanidade
estripadas. Nossa autonomia foi falsificada e substituída por uma série de
sonhos e ideais ligados ao consumismo.
Nossa identidade está tão fragilizada que está basicamente ancorada às roupas
que usamos, aos carros que guiamos, às casas que jazemos, às funções sociais que
executamos, etc.
Karl
Marx[3]:
(...) confiava que a contradição interna do capitalismo e
a agudização da injustiça que sofria o proletariado, constituiria um sujeito
revolucionário capaz de por fim a todo tipo de dominação social, isto é, de
alcançar uma verdadeira emancipação (Moreira, 2008, p.17).
Infelizmente
Marx estava errado, a contradição verificada no capitalismo gerou um sujeito
psicologicamente esvaziado, sem identidade própria, que pode ser facilmente
manipulado por espetáculos estéticos, que busca acima de tudo dominar para não
ser dominado, que pouco faz em busca da autoemancipação
e que foi e é capaz de abdicar de sua própria racionalidade e humanidade em
direção a regimes nazistas e fascistas, como de fato ocorreu em meados do
século XX. Mas isso foi a mais de cinquenta anos atrás, temos as cicatrizes
expostas e muitas delas ainda sangram em nossa política internacional.
A indignação e revolta dos oprimidos acaba convertida em auto conservação
do sistema. Sou professor de escola e sempre vejo muitos pais, alunos e colegas
professores reclamando da qualidade do ensino público brasileiro que vem sendo
sistematicamente sucateado a partir dos anos de governo militar. Porém poucos
são os que canalizam sua revolta na forma de protestos e projetos que vão além
da garantia de seus próprios direitos e salários maiores. No geral, nossa
grande vitória e motivo de orgulho ocorrem quando conseguirmos dar aos nossos filhos
educação particular, cara, porém de qualidade.
Num sistema baseado na diferença é evidente que somente alguns
possam vencer e que a grande maioria fracassará. Talvez por isso as filas para
comprar bilhetes de loteria sejam tão grandes e países como o Brasil
reverenciem astros do futebol que ganham milhões e mais milhões para pouco contribuírem
para melhoria de sua própria terra.
A indústria cultural não só privatizou as mais variadas formas de
expressão artísticas no século XX, como falsificou quase tudo que poderíamos
desejar. Estamos sendo enganados por nós mesmos. O Sonho Americano é uma mentira tão assassina quanto a frase “O trabalho liberta” escrita nos portões
de Auschwitz. Mas o que podemos fazer se mesmo o comunismo, que para
mim foi a alternativa mais bem elaborada e exaustivamente explorada contra tal
sistema, falhou e ruiu como os tijolos do emblemático Muro de Berlim?
Na
resolução desta questão as pessoas que realmente estão interessadas em mudar o
mundo devem estra dedicadas daqui para frente. Não faz sentido falarmos em
políticas e tecnologias verdes se no fundo estivermos nos referindo apenas aos
conceitos de políticas e tecnologias verdes. Não adianta falarmos em reestruturação das relações humanas, se
no fundo estivermos falando na reestruturação dos conceitos relacionados às
relações humanas. Existem muitos números, gráficos e cifras, mas onde estão as
pessoas? Será que vivemos uma síndrome de torna os indivíduos invisíveis?
Coloquialmente
falamos que há um Sonho Americano e capitalista por detrás de tudo. Isto
equivale dizer que estamos dormindo e necessitamos acordar para mudar esta
realidade.
Dentro
de um mesmo povo, por mais características em comuns seus membros possuam, sempre
existem diferenças suficientes que permitem que várias coisas sejam superadas,
mesmo havendo muita dor e sofrimento. Porém se atentarmos para apenas um
indivíduo em sua particularidade, iremos facilmente perceber que seu limite é
muito menor. Visto que somos sobreviventes de um processo sistemático de
esvaziamento psicológico, estamos ainda mais fragilizados. É neste momento que
surge a importância histórica de Mohamed Bouazizi.
Mohammed
Bouazizi não foi um filósofo, nem político ou mesmo algum tipo de radical
fervoroso. Ele era apenas mais um indivíduo esvaziado, um cidadão violentado,
um jovem que como eu nasceu num mundo cheio de problemas, mas que se diz “já resolvido”. Ele era um “simples”
vendedor de frutas na pequena cidade de Sidi
Bouzid, no interior da Tunísia.
Um homem dotado de razões e sentimentos únicos à sua pessoa, porém considerado
descartável, substituível e desnecessário pela lógica dominadora do mundo e
pelo governo de seu país. Mohammed Bouazizi não queria mudar o mundo nem
defendia qualquer tipo projeto mirabolante revolucionário. Ele queria apenas o
direito de vender suas frutas no seu carrinho para trazer um pouco de dinheiro
para se autossustentar e sustentar sua família dentro da legalidade e dignidade
mínimas e comuns para qualquer Estado e seus cidadãos.
Como
tantos de nós, e cada vez mais em tempos de crise econômica mundial, Bouazizi
não conseguiu arranjar um emprego formal. Devido a isso teve que partir para a
informalidade justamente por ser um bom e justo homem, caso não fosse
certamente teria partido para a ilegalidade, visto que traficar e roubar são
“negócios” muito mais lucrativos do que vender frutas e legumes na rua. Ele
apenas queria ajudar sua família e evitar que ele mesmo morresse de fome.
As
autoridades da cidade confiscaram o carrinho de frutas de Bouazizi alegando ser
ilegal a venda ambulante na Tunísia. Ainda dentro da legalidade, Mohamed foi à
sede do governo regional para tentar se defender e recebeu um sonoro “não”.
Autoridades
disseram que Bouazizi não tinha permissão para vender nas ruas, porém de acordo
com o ministro do trabalho daquele país nenhuma permissão é necessária para
vender com um carrinho.
Visto
que dentro desta lógica ele não teria a permissão para simplesmente não morrer
de fome, ele deixou uma mensagem para sua mãe no Facebook pedindo perdão por ter perdido a esperança em tudo. Comprou
diluente altamente inflamável e foi até a frente do prédio do governo local.[4]
Ao invés de garantir seus direitos, o Estado
esvaziou as últimas gotas de sua racionalidade. Tomaram-lhe suas frutas,
destruíram sua tenda, humilharam-lhe em praça pública. Para Bouazizi, nada
restou além de sua revolta. Num ato de total desespero frente à opressão que o
sistema no qual estava submetido a viver lhe aplicava, Mohammed ateou fogo em
seu próprio corpo.
Sua
autoimolação no dia 17 de dezembro de 2010 fatalmente lhe conduziu à morte,
porém as chamas que dominaram seu corpo tiveram o poder de ocupar o espaço
ocioso deixado pelo sistema no interior de boa parte de seus compatriotas, que
foram as ruas protestar e se impor contra a lógica dominadora e mesmo sem
representar partidos ou sindicatos, conseguiram fazer com que o então
presidente da Tunísia Ben Ali
renunciasse depois de vinte e três anos no poder.
Por
não ser nenhum defensor de causa, não julgo que Mohammed Bouazizi deva ser
considerado um mártir. Ele foi apenas um indignado que assim como eu e mais 99%
da população sofre diariamente com algum tipo de violência ou injustiça
oriundas de um sistema que deveria evitar tudo isso, mas não o faz. Justamente
por ser a imolação de “apenas mais um”
e não “do mártir salvador” é que o
sacrifício de Bouazizi ganhou a força necessária para mudar a realidade de seu
país e a motivar os movimentos revolucionários em tantos outros. Neste sentido,
cada indivíduo indignado que lotou as praças e os prédios públicos na Primavera Árabe ou nos diversos Occupy e marchas espalhados pelo mundo encarnou seu espírito, revolta e dor.
O calor das chamas imanentes de seu corpo contaminou o mundo com uma sincronia
cosmopolita febril.
Mesmo que só alguns tenham percebido, é por isso que
somos todos, ou pelo menos 99%, Mohammed Bouazizi.
OS FILHOS DA COCA-COLA
Vladimir
Safatle diz que sua geração, dotada de homens e mulheres que hoje passam dos quarenta
anos de vida, foi a geração que quebrou o mundo. O que então resta para os
filhos desta geração?
Lembro
que na idade de vocês, dezoito, dezenove, vinte anos, costumava ouvir que não
havia mais luta política a ser feita, que o mundo estava globalizado e o que
valia era a eficácia, a capacidade de
assumir riscos, de ser criativo, inovador, de preferência em uma agência de publicidade
ou no departamento de marketing de uma grande empresa. Se assumíssemos essa
nova realidade, entraríamos em um futuro radiante onde só haveria vencedores e raves. Onde os que ficassem para trás,
no fundo, teriam um problema moral, pois não haviam tido a coragem de assumir
riscos, a necessidade de inovação e coisas do tipo. (Safatle, 2012, p.53)
Parece-me que os riscos assumidos por essa geração que
hoje dominam os mercados financeiros e as lideranças políticas mundiais, foram
demasiadamente altos. Poucos enriqueceram muito e muitos se afundaram em
dividas ou na miséria absoluta. Por fim, entramos em uma crise econômica que
não sabemos como sair, ou nas palavras do autor, esta geração “simplesmente conseguiu quebrar o mundo”.
Após a derrota do totalitarismo na segunda guerra
mundial, a queda de muitas ditaduras e o fim do socialismo já há
aproximadamente vinte anos atrás, o mundo parecia estar caminhando para o lugar
certo. Talvez por isso os jovens daquela época caíram no erro de achar que não
era mais necessária a participação popular nas grandes decisões do planeta. Tal
geração se entregou à corrupção, à especulação imobiliária, à indústria
cultural, aos abusos financeiros ao endividamento desenfreado, ao conceito de “viver bem” e acabaram por se esquecer de
que não há vida boa sem calor humano, justiça, sustentabilidade ambiental e
equidade social. Safatle se pergunta: “Como
acreditamos durante tanto tempo que nenhum acontecimento real pudesse
ocorrer?(...) como se acreditou durante tanto tempo que a roda da história
estava parada(...)”(Safatle, 2012, p.54).
Esta foi a geração que criou o maior de todos os movimentos totalitários, o movimento totalitário do dinheiro. Foram
os homens que desacreditaram no poder das multidões entregando aos “místicos” princípios do liberalismo
econômico o futuro do planeta e com isso colocaram em funcionamento uma das
mais assassinas formas de poder da história da humanidade.
Eu sou um filho desta
geração. Um jovem
que como Mohammed Bouazizi e tantos outros desfrutamos
de pouco mais ou pouco menos de vinte anos de idade e possuímos histórias de
vida semelhantes. Passamos a infância em creches e escolas desacolhedoras. Ainda muito jovens tivemos nossa imagem fantasiosa
do mundo manchada pelos ataques
terroristas de onze de setembro. Assistimos vários colegas perderem suas
vidas para as drogas, para o crime, ou para insanidade total que os levou a
invadir a escola armados e prontos para massacres. Nossos pais perderem
empregos de mais de trinta anos devido à súbita falência de suas empresas.
Fomos tomados por um falsificado
“espírito nacionalista libertador” que nos colocou em guerras contra
inimigos que de fato nem existiam. Por fim, nos formamos na faculdade e nos
deparamos com uma porção de promessas não cumpridas e com um mundo poluído e
falido de herança.
Não
acreditamos mais nas instituições tradicionais. A escola nos ensinou tudo errado,
pois estava perfeitamente submetida à logica dominadora do sistema supracitado.
A mídia não presta e mente para defender os interesses dos anunciantes. A
igreja secularizou-se, matou deus, se converteu ao capitalismo e virou um mercadão da fé. A família se tornou uma
utopia baseada nos alegres comerciais de
margarina. Sindicatos e partidos políticos só defendem seus interesses
privados. O clima e a economia se tornaram caóticos, poluídos e imprevisíveis.
Estado Moderno se tornou uma instituição privada sob a tutela de políticos
corruptos distantes do povo[5]:
(...)não
dá mais para confiar em partidos, sindicatos, estruturas governamentais que
podem ter suas funções em certos momentos, mas não têm nenhuma capacidade de
ressoar a verdadeira necessidade de rupturas.(...) A época em que nos
mobilizávamos tendo em vista a estrutura partidária acabou, acabou
radicalmente.(...) Podemos não saber o que vai acontecer no futuro, que tipo de
nova organização política aparecerá, mas sabemos muito bem onde acontecimentos
não ocorrerão. Com certeza não nas dinâmicas partidárias. (Safatle, 2012. P.55)
Se a
geração anterior realmente acreditava que o mundo caminhava para o lugar certo
e os mais jovens já sabem que isso é uma grande mentira, nós somos os filhos do
meio da história. Somos os mais afetados, somos os esvaziados, somos os
indignados. Temos o dever de protestar e ocupar o que foi necessário. Temos o
direito que querer mudar o mundo.
QUANDO A OCUPAÇÃO ACABAR
Tudo
começou como numa brincadeira de alguns amigos hackers e nerds.
Alguns
analistas tentam minimizar a importância da autoimolação de Mohamed Bouazizi
afirmando que ele foi apenas a chama que botou fogo no barriu de pólvora que
eram os vários países do norte africano onde explodiu a Primavera Árabe. Eu concordo parcialmente, pois julgo que a
verdadeira explosão revolucionaria ainda está longe acontecer. Para mim,
Mohamed foi a chama que acendeu um longo pavio chamado de web 2.0 que
certamente se desenvolverá ainda mais ao longo do século. Para deixar bem clara
minha intenção, julgo que mais do que uma simples tecnologia da comunicação, a
web 2.0 dotada de suas redes sociais, blogs e wiks, representa uma quebra
paradigmática na história da humanidade, pois dá ao indivíduo comum novamente a
possibilidade de se expressar autonomamente e se impor às mais diversas formas
de opressão numa velocidade avassaladora e com progresso em redes gigantesco.
Sob este foco gostaria de me dedicar brevemente à análise das opiniões de
alguns filósofos e cientistas sociais sobre os movimentos Occupy que tomaram o
mundo no ano de 2011.
É de
Henrique Soares Carneiro o termo sincronia
cosmopolita febril que uso como título deste trabalho. Para ele os
movimentos Occupy conservam uma série de semelhanças e por isso merecem serem
observados como uma força cosmopolita. São movimentos quase espontâneos com uma
forma de ação baseadas em ocupação de praças, uso de redes de comunicação
alternativas e articulações políticas que recusam o espaço institucional
tradicional. (Carneiro, 2012, p.8)
Conforme o país, ou ainda o grupo organizador,
cada Occupy ocorre de uma forma diferente, porém sempre detém como pano de
fundo a indignação oriunda da percepção do esvaziamento psicológico
supracitado. Por exemplo: Nos países africanos tomou a forma de revolução democrática; no Chile em
protestos estudantis por educação pública e gratuita de qualidade; na Grécia e
na Espanha como forma de expressar o descontentamento como a crise econômica e
principalmente contra as meditas que seus governos adotam para combatê-la; Nos
Estados Unidos a ocupação de Wall Street surge como crítica a lógica do mercado
financeiro que não é capaz de promover igualdade social, enriquecendo poucos e
empobrecendo muitos; no Brasil tomou a forma de luta contra a corrupção que
contamina todos os setores de nossa política. Existe também uma grande
quantidade de marchas e protestos pontuais que defendem interesses específicos,
como a Marcha da Maconha que tenta legalizar o uso, produção e comércio desta
droga, e a Marcha das Vadias que busca uma nova representação feminista e
feminina contra o preconceito e os abusos contra as mulheres que são reduzidas
pela sociedade e pela mídia a meros objetos sexuais submersíveis aos desejos
masculinos; além de movimentos de defesa étnica, ambiental, direitos humanos,
direitos dos animais, liberdade de expressão, etc.
Houve
algo de dionisíaco nos acontecimentos de 2011: uma onda de catarse política
protagonizada especialmente pela nova geração, que sentiu esse processo como um
despertador coletivo propagado não só pela mídia tradicional (...), mas por uma
difusão nova nas redes sociais da internet (...), tomando forma de disseminação
viral, um boca a boca eletrônico com mensagens replicadas para milhares de outros
emissores. (Carneiro, 2012, p.9)
Antes de qualquer coisa, os Occupy devem ser entendidos
como o grito dos oprimidos; como a voz dos filhos do meio arranjando seu jeito
de ser ouvida. Estamos falando de um movimento que está acontecendo agora, por
isso talvez as críticas disponíveis ainda não sejam suficientemente
esclarecedoras para sabermos a real magnitude disso tudo. O que posso afirmar é
que ao contrário do que afirmou Immanuel Wallerstein[6],
isto não tem nada a ver com políticas de esquerda. 2011 não foi um ano bom para
ninguém que defenda a política opressora tradicional, pois foi quando alguns
perceberam que se tratava da luta dos 99% contra 1%, usaram as redes e foram as
ruas. Julgo que os Occupy são uma forma de aversão a toda forma de opressão,
seja ela econômica, política, ou cultural. Estamos interessados em propostas
totalmente novas. A resposta mais fiel ao espirito Occupy que um manifestante
pode dar à pergunta “-Qual é a proposta
política de vocês?”, julgo que é: “-Não
temos nenhuma proposta, mas sabemos que não estamos satisfeitos com as
propostas atuais. Queremos algo novo. Chega de remendos!”.
Aliás, nada é mais injusto frente aos movimentos Occupy
do que tentar entende-los a partir de uma série de perguntas do tipo: qual a
proposta, o que vocês querem, por que vocês estão aqui, etc. Estas perguntas só
são esclarecedoras dentro da lógica opressora tradicional, pois tudo que buscam
é reduzir a força revolucionárias dos movimentos em uma série de conceitos
facilmente entendíveis, distorcidos e manipuláveis. Isso certamente deu um nó
na cabeça dos mais tradicionais, não só dos opressores, mas também dos
ativistas e estudiosos revolucionários. O fato é que muito além da causa
defendida, todo Occupy deve ser entendido como uma luta contra o sistema.
David Harvey[7]
ressalta a união dos corpos no espaço público
como a grande marca destes movimentos. Não só ele mais a maioria dos analistas
que li, acreditam que o retorno das discussões políticas às praças públicas
tiveram muito mais importância do que os fluxos de comunicação pela internet.
Neste ponto julgo que estão todos equivocados.
A indignação contra o sistema e sua lógica opressora não
é de hoje. Porém estávamos condicionados a acreditar que se tratava de uma
indignação solitária e pontual. A comunicação em redes, as pesquisas online e a
propagação da informação sem comprometimento através de blogs e wiks nos
colocou em contato com milhões de indignados de todo o mundo, algo
completamente impensável dentro da lógica da antiga Indústria Cultural. Em
pouco tempo a internet fez ver que éramos 99% de oprimidos lutando contra
apenas 1% de opressores.
O
primeiro e fundamental passo em direção a uma democracia real foi dado na
internet. As manifestações em praça públicas foram apenas um movimente
secundário. Não há nada de novo na utilização de ocupações de espaços públicos
e privados como forma de protesto, vimos muitas vezes o MST ocupar todo tipo de
lugar, bem como vimos que o uso da violência é extremamente eficaz contra este
tipo de protesto. O calor humano e as aglomerações podem ser facilmente
dissipados com o uso de bombas e tiros: a
guerra civil que a Síria vive
atualmente reflete exatamente o que estou dizendo. Porém como o mundo virtual é
um ambiente criado pelo ser humano e que pode ser manipulado e reconfigurado
por qualquer hacker, todo tipo de
bloqueio impostos contra manifestações online sempre pode ser facilmente
superado. Julgo que os Occupy devem ficar marcados na história não por suas
semelhanças com velhas revoluções, mas sim por sua novidade fundamental que
está baseada no uso da web 2.0 em favor dos oprimidos.
Quando
a ocupação acaba, a revolução continua e se intensifica nos ambientes públicos
e democráticos do mundo virtual. Para mim, esta é a quebra paradigmática na
forma de se fazer revoluções que será lembrada daqui muitos anos quando se
falar sobre os Occupy.
O
OCUPADOR E O PRISIONEIRO DA CAVERNA
Giovani
Alves[8]
diz que os Occupy necessitam de uma mínima plataforma política para lutar
efetivamente contra as injustiças sociais. João Alexandre Peschanski[9]
acredita que a indignação contra as mais variadas formas de desigualdade social
são claras, mas as ideias de igualitarismo dos movimentos ainda são muito
vagas. Tariq Ali[10]
questiona sobre contra o quê se está lutando. Para Slavoj Zizek[11]
não basta criticar o sistema, os Occupy necessitam apresentar uma alternativa
para poderem transformar o mundo. Concordo com todas estas críticas, mas acho
que são injustas frente a real natureza dos movimentos de protesto que tomaram
as ruas em 2011.
A
maioria dos analistas está tentando entender os Occupy como algo em si e por isso se precipitam em
suas análises. Por tudo que foi descrito neste trabalho, julgo que estes foram
os primeiros e necessários passos para tirar toda uma geração da inércia
política. Visto isso, outros passos nos são agora necessários para acelerar o
processo que pode nos levar a tão sonhada emancipação prometida por Kant na era
do Esclarecimento, bem como fará do mundo um lugar mais justo e igual para que todos
possam viver e desfrutar de nossas diferenças.
Não acho
que a falta de propostas seja um problema agora. Vivemos o momento de
simplesmente nos unirmos e compartilharmos vivências para protestarmos contra
toda forma de violência e ocultação da verdade. Neste momento é normal a falta
de clareza nos discurso dos manifestantes.
O
ocupador é como o prisioneiro da caverna de Platão que se liberta das correntes
e deslumbra um mundo muito além das sombras refletidas nas paredes. Porém ao
voltar para a caverna não consegue se expressar para os que continuam acorrentados,
afinal aprenderam durante toda a vida que tudo que existe são as sombras e que
não se necessita nada mais para viver. Da mesma forma que o prisioneiro foi
condenado por seus irmãos da caverna, muitos hoje condenam os ocupadores sob
acusações de românticos, radicais, sonhadores, vagabundos e até de loucos; mas
o fato é que são eles os mais esclarecidos, porém estão incapacitados de
transmitir tal esclarecimento devido a falta recursos intelectuais de todas as
partes.
Ao
invés de nos determos à análise ou mesmo à critica destes movimentos, intelectuais
de todas as áreas devem estar unidos e concentrados em busca à formulação de
propostas realmente novas, que supram as necessidades dos indignados e promovam
igualdade social e respeito aos diferentes. Normalmente este tipo de trabalho
acadêmico interdisciplinar de alto nível é difícil de ser elaborado, mas talvez
a própria organização horizontal que respeita as especialidades de cada
indivíduo membro aplicada nos movimentos Occupy seja o melhor caminho a ser
tomado.
O
Primeiro e mais importante passo foi dado nas redes sociais, Depois foi à vez
de ocuparmos as ruas e praças. Agora temos o dever de gerarmos subsídios
intelectuais para suprirmos o vazio que fica após as ocupações. Caso contrário,
corremos o risco de deixarmos a porta aberta para antigos inimigos, como o
totalitarismo, o fundamentalismo, o extremismo religioso, etc.[12]
CONCLUSÃO
Sem
as redes sociais a autoimolação de Mohamed Bouazizi seria apenas mais um fato
noticiado por trinta segundos pela mídia local. Porém hoje temos máquinas
poderosas que permitem filmar e nos comunicarmos instantaneamente com milhões
de pessoas, devido a isso não existem mais fatos isolados, o que acontece no
interior de um pequeno país logo é transmitido para o mundo todo. A internet
acabou com algumas de nossas ilusões que eram chaves para a manutenção da
lógica dominadora imposta por governos, políticos de todos os lados, pela
Indústria Cultural e pelo poder “superior” da economia. Isso nos levou novas necessidades
de socialização global, uma espécie de globalização dos direitos, algo ainda
muito obscuro que mais parece uma sincronia cosmopolita febril, mas que já
colhe seus bons e maus frutos. Dentro deste novo paradigma ainda não temos
clareza sobre o possa acontecer, mas afirmo que os Occupy não são a revolução
em si, mas um passo inicial contra toda forma de violência, afinal o terror
continua, porém se esconde atrás de uma série de mentiras que os indignados só
agora conseguem enxergar e comunicar isso para o mundo através da web 2.0.
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor
W. Dialética do esclarecimento :
fragmentos filosóficos. Rio de
Janeiro : Zahar, 2006. 223 p.
ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Rio de Janeiro : Zahar, c2009. 351 p.
ALI, Tariq. O espírito da época. p.65-72 in Occupy / [David Harvey ... et al.] ; [tradução João Alexandre Peschanski ... et al.]. – São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2012
ALVES, Giovanni. Ocupar Wall Street... e depois? p.31-38 in Occupy / [David Harvey ... et al.] ; [tradução João Alexandre Peschanski ... et al.]. – São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2012.
CARNEIRO, Henrique Soares. Rebeliões e ocupações de 2011. p.7-14 in Occupy / [David Harvey ... et al.] ; [tradução João Alexandre Peschanski ... et al.]. – São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2012.
DAVIS, Mike. Chega de chiclete. p.39-45 in Occupy / [David Harvey ... et al.] ; [tradução João Alexandre Peschanski ... et al.]. – São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2012.
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Entregue em 25/06/2012 para publicação na revista "Opinião Filosófica"
[1] Mestrando em Filosofia na
área de Ética e Filosofia política pelo PPGFil da PUCRS sob a orientação de
Dr.Agemir Bavaresco; bolsista do CNPq; Bacharel e Licenciado em Filosofia pela
PUCRS e professor de Filosofia da Secretaria Estadual de Educação do Estado do
Rio Grande do Sul. fabiogt@zipmail.com.br
- http://www.filosofiahoje.com/
[2] Como Visto em: Livro Aberto
11/06/12 - com Gustavo Oliveira de Lima Pereira (Parte 1) disponível em http://www.youtube.com/watch?v=L7aMFz5CWVc& acessado em 20/06/2012.
[4]Este e os três parágrafos anteriores são paráfrases feitas sobre o
artigo sobre Mohamed Bouazizi disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Mohamed_Bouazizi
acessado em 21 de Junho de 2012.
[5] Talvez nem todas estas observações sejam fatídicas, mas refletem
meus sentimentos e os sentimentos de muitos humanos de minha geração.
[6] No artigo: A esquerda mundial após 2011 p.73-76
[7] No artigo: Os rebeldes na rua: o Partido de Wall Street
encontra sua nêmesis. P.57-64
[8] No artigo: Ocupar Wall
Street... e depois? P.31-38
[9] No artigo: Os “ocupas” e a
desigualdade econômica. P.27-30
[12] Como muito bem
avaliado e expresso por Emir Sader no artigo: Crise capitalista e novo cenário no Oriente médio. sobre a
tentativa de golpes políticos destes grupos em países que se envolveram na
Primavera Árabe.
Amei! Muito obrigada!!!
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