Vivemos num mundo tomado pela banalidade do mal. Quando um homem, ombreando a briosa farda da milícia de Tiradentes, abrevia, covardemente, a existência de um inocente e desce, calmamente as escadas, onde jaz o pobre menino negro, isso não é apenas um caso isolado: todos nós, em menor ou maior escala, somos culpados.
Somos culpados por assistir, impassivelmente, à barbárie e por alimentar, com nosso silencioso medo, o mal.
Somos culpados porque esquecemo-nos do poeta Castro Alves, quando nos disse que "a sorte dá, nega e tira" e ignoramos que o mal que alimentamos com a indiferença hoje, um dia pode se virar contra nós.
Somos culpados porque nos horrorizamos hoje, mas nos esquecemos amanhã, quando a vida nos arrasta aos problemas do cotidiano e perdemos o tempo para o espanto.
Somos os olhos que veem, todos os dias, a violência e não denunciam. Somos o medo que impediu qualquer reação contra o assassino,
Somos a polícia que prefere proteger um criminoso que com sua farda conspira, hoje, contra toda a honrosa corporação, a reagir veementemente contra o crime militar.
Somos o cimento por onde escorre o sangue vivo do menino morto.
Há séculos,John Donne escreveu: “nenhum homem é uma ilha, que se basta a si mesma. Somos parte de um continente; se um simples pedaço de terra é levado pelo mar, a Europa inteira fica menor. A morte de cada ser humano me diminui, porque sou parte da humanidade. Portanto, não me perguntem por quem os sinos dobram: eles dobram por ti.”
Na verdade, podemos pensar que os sinos dobram pelo menino que morreu, mas ele dobra por todos nós. Seu soar renitente insiste, com o afã de nos despertar deste estado de aceitação com a banalidade do mal que, exceto por alguns segundos, só nos espanta, quando nos toca.
Não somos uma ilha e a morte do menino Eduardo leva um pedaço de cada um de nós que, agora, nos pegamos olhando, assustadamente, para nossas crianças, pedindo a Deus que nada lhes aconteça.
Nossa única esperança é a de que os sinos não parem de tocar e que, tocando, nos perturbe e nos impeça de dormir e que, acordados, saiamos às ruas, desliguemos a televisão, fechemos os comércios, paremos o trânsito e façamos com que os sinos parem. Neste momento, perceberemos que, embora seja confortável culpar a PM, os governantes, o silêncio e a imprensa, apenas nós podemos parar esses sinos.
Até lá, assistiremos ao império da banalidade do mal e ouviremos, assustados, os sinos que clamam pela nossa reação.
Mayck Sather, colunista da página Filosofia Hoje.
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